Hoje dei de cara com a data 7/7 no relógio, e instantâneamente bateu um "flash-back" dessa data em 1977. Desde criança tinha superstição com o 7, que achava ser o número da sorte. Naquela data, 7/7/77, tudo de bom deveria acontecer. Tinha 20 anos, estudava na PUC do Rio e tinha uma prova de Mecânica Geral II. Livro estrangeiro, professor PHD que conhecia tudo mas era carente em pedagogia, matéria enrolada. Tinha estudado, mas não era o suficiente. Achei a prova tranquila. Escrevi o tempo todo, fiz tudo. Saí satisfeito, até que dias depois descobri que na data "perfeita" tinha tirado o meu primeiro zero numa prova. A superstição estava falida.
Não gosto muito de lembrar desse periodo na PUC, mas me veio tudo à memória e resolvi escrever sobre isso aqui, para me aliviar. Deu tudo errado. Fui parar lá por uma série de erros de avaliação. Gostava muito de eletrônica, estimulado principalmente por um brinquedo que ganhei ao passar para o ginásio, o Philips Electronic Engineer. Montava os kits do brinquedo, e depois passei a tentar consertar aparelhos elétricos quebrados, tomando muitos choques e errando mais que acertando. Empolgado com o meu gosto pela coisa, meu avô materno, que era como um patriarca da família, apostou que eu iria estudar eletrônica em Santa Rita do Sapucaí (MG), que já era uma referência na matéria.
A aposta era boa, mas eu não estava a fim de sair do Rio. Se dependesse do velho Alcides, teria feito o ginásio no Colégio Militar, mas preferi o Aplicação da UERJ, que além de civil, era misto. Com a minha resistência, a opção recaiu sobre a PUC, onde uma irmã mais velha já vinha cursando elétrica na área de sistemas e o curso era o melhor do Rio. Só que a PUC era particular, muito cara, ficava a dois ônibus e mais de uma hora de viagem da minha casa, e o curso era em tempo integral e até à noite, quando ficava mais disponível o Rio Datacentro para o estudo das cadeiras de computação. Meu avô disse que ajudaria. Fiz o vestibular unificado do Cesgranrio com primeira opção para a PUC elétrica, e segundo para a UFRJ, terceiro na UERJ. Coisa de louco. Ninguém fazia isso, trocar uma universidade gratuita por uma paga.
Tive pontuação para passar tranquilamente para a Federal, para a UERJ, mas fui para a PUC, onde logo de cara senti que a barra seria muito pesada. A estória que corria em 1975 dizia que as finanças da universidade ficaram combalidas pelo "boom" da Bolsa de Valores em 1972, onde se ganhou e se perdeu muito dinheiro. A partir das dificuldades, fizeram convênios com entidades estrangeiras, que exigiram uma mudança no perfil dos cursos tecnológicos em troca de recursos.
A PUC, justo no ano que entrei, não formaria mais com a visão de suprir o mercado, mas focaria principalmente para a excelência, para que o formado seguisse pós-graduação, mestrado, doutorado, formando bons mestres para o ensino. Logo de cara o coordenador do Centro Tecnológico fez uma palestra de boas vindas onde disse que o que viria pela frente faria a pedreira do vestibular parecer uma brincadeira. Só os realmente interessados em continuar a carreira de pesquisadores e professores sobreviveriam. Deviam ter dito isso antes do vestibular...
Tudo mudou justo quando entrei. Duas reprovações na mesma matéria significavam jubilamento. Contrataram professores estrangeiros que falavam precariamente a nossa língua, muitos PhD indianos, franceses, alemães, etc. A bibliografia era quase toda estrangeira, e muito cara. Em poucos semestres o pessoal que entrou comigo foi dizimado. A gente fazia a primeira prova, via a nota e corria para o trancamento, se não fosse muito boa, para fugir ao jubilamento.
Para completar o drama, eu era o mais pobre de todos. Meus colegas eram da zona sul, tinham carro, almoçavam em casa. Eu tinha que ficar lá o dia todo, comendo no bandejão, estudando na biblioteca, dependendo de carona, e não aguentava mais aquilo, mas meu avô me cobrava e insistia. Quem acabou pagando o curso foi meu pai, que não tinha condições. Acabei pegando uma bolsa de estudos de um convênio filantrópico, mas as dificuldades continuaram.
Apesar de tudo, a PUC tinha um dos poucos DCEs e Centros Acadêmicos que resistiram à ditadura por todo o período, sem fechamento. Haviam resistido ao período Médici, e quando entrei, o ditador já era o Geisel, que começou a relaxar a repressão, mas mesmo assim havia gente infiltrada e informantes conhecidos e visíveis pelo campus na Gávea. Logo que cheguei houve um boicote ao bandejão, e os alunos assumiram parte da gestão.
Houve uma greve onde helicópteros do exército pairaram sobre o campus com armas para fora, e felizmente não houve nada mais grave. Fizemos também uma luta contra a construção a auto-estrada Lagoa-Barra que iria cortar em dois o campus, barrando tratores e tudo. Acabou construída à meia-encosta, com muitas restrições e exigências para não afetar os equipamentos do acelerador de partículas Van de Graaff, que acho que era o único no Brasil na época.
Foi na PUC que conheci um movimento embrionário chamado Convergência Socialista, amplo, através de uma palestra do Lysâneas Maciel, que viria a ser candidato pelo PT ao governo do Rio em 1982. Ali tive contato com idéias trotskistas e adquiri uma visão critica ao estalinismo do leste europeu. No ano de 77 também começou a emergir o movimento social, com ocupações de terras e greves de trabalhadores. E também a virada na ditadura, com a prisão do general linha-dura Silvio Frota, abrindo o caminho para o processo de "transição lenta e gradual" para a democracia.
Os padres foram os responsáveis pelo respeito à integridade do campus. Não aceitavam intervenções. Havia claramente dois grupos de religiosos responsáveis pela universidade: os mais próximos da Teologia da Libertação, de esquerda, que apoiavam as lutas, e os mais conservadores, entre eles um bem idoso que dava aula de Iniciação à Bíblia e que exigia que todo mundo rezasse no início da aula. Em respeito à pessoa frágil e caridosa do professor, todos se levantavam e alguns rezavam, outros faziam mímica, outros simplesmente nada faziam. O hilário de tudo isso é que a turma tinha uma parcela de ateus e uns 20% de judeus. No final, todos passavam.
Deixando as memórias de lado, afinal ainda não sou velho o suficiente para escrever esse tipo de coisas, o ano de 77, que a crença me indicava como perfeito, terminou com o falecimento do meu avô, que também tinha me mandado fazer o concurso para o Banco do Brasil em 1975, no qual passei bem colocado e ele mesmo dizia para não tomar posse porque engenharia estava dando mais dinheiro. Com a sua morte em setembro, tomei posse no BB em outubro, tranquei a PUC e fiz novo vestibular para engenharia civil na UERJ, que era mais a minha praia. E nunca mais tive superstições. Hoje passo debaixo de escada só para escandalizar os crédulos.
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