Hoje pela manhã foi implodida uma ala do prédio inacabado do Hospital Universitário da UFRJ. A estrutura estava submetida às intempéries, porque não havia fechamento com paredes, desde a sua construção em 1950. Foram 60 anos de sol, chuva, calor, frio, maresia, poluição, enferrujando o aço e enfraquecendo o concreto. Foi implodido porque representava risco à outra ala, onde há instalações funcionando.
Foram 60 anos de descaso, irresponsabilidade e desperdício na área de saúde num país campeão de índices negativos no setor. O que virou entulho agora representava cerca de 40% do valor do prédio concluído. Com algum recurso a mais a obra poderia parar num estágio seguro para a estrutura. Faltou visão, ação política, interesse público e, por fim, dinheiro. É daquelas coisas que se aprova num orçamento o recurso para fazer uma etapa, e no outro, por alguma razão ou para atender a interesses políticos, deixa de ter continuidade.
Isso está na nossa cultura política. Alguém vai lá, lança a pedra fundamental, leva a obra até a cumeeira, e depois esquece. Nesse tempo, quem a fez já ganhou a eleição que queria, já recebeu a doação da empreiteira para a sua campanha, e que se dane o esqueleto inútil. Conheci uma cidade no interior onde isso era extremo, pois havia duas facções inimigas que se revezavam no poder. O que um começava, o outro não terminava. Aliás, nenhum terminava, porque ao final dos mandatos eram lançadas outras "novidades" para enganar eleitores. Havia dois esqueletos de rodoviária, dois de hotel municipal, dois de hospital, e por aí vai. E a casa do prefeito era sempre a melhor da cidade, sempre perfeitamente acabada.
Também não dá para entender como esse hospital ficou de fora do Programa Reforsus, do Ministério da Saúde. O programa de conclusão de hospitais teve um convênio onde os recursos eram do Banco Mundial, e as maiores obras foram supervisionadas pela engenharia do Banco do Brasil, que controlava da qualidade dos projetos à liberação de recursos. Todas as obras foram concluídas com qualidade, sem desvios de dinheiro. No Rio, o Hospital Pedro Ernesto, da UERJ, entrou no pacote de reformas.
O Reforsus não era só obras: nos pacotes de financiamento havia uma parte dos recursos dedicada ao treinamento de gestão e outra à aquisição de equipamentos. Terminado o programa, o Reforsus virou um "link" morto na página do Ministério da Saúde. Uma equipe de ótimos profissionais foi desativada, pulverizando conhecimentos adquiridos no processo. Foi uma das poucas vezes que vi planejamento e controle das coisas do governo.
O desperdício não para nas obras: na época que participei como supervisor de dois contratos de obras, tive contato com todas as partes interessadas: governos, instituições interessadas, profissionais de saúde, autoridades federais, funcionários, etc. Uma das obras era de um hospital universitário, parada há 20 anos. Quando estava por lá, as pessoas diziam coisas tipo "duvido que terminem, pois há 20 anos se batalha verba e não tem", e mesmo coisa mais ofensiva como "vão comer o dinheiro e não vão acabar a obra". Nesse período de 1999 a 2002, ouvi relatos cabeludos de coisas da burocracia que não conseguia acreditar.
Um exemplo grave: num certo hospital foi comprada uma central de ar condicionado de ótima qualidade. Terminada a garantia, teve um problema no compressor que demandou a compra de uma peça. Não havia recurso para adquiri-la no orçamento, que tem rubricas bem especificadas. Mas no mesmo orçamento havia dinheiro para comprar aparelhos tipo janeleiro, e em toda a edificação eles foram instalados, sem os requisitos da central, que tinha filtros, etc. Outro: havia uma carcaça de ambulância num pátio que não podia ser jogada fora porque era de um convênio, tinha que constar do inventário, etc.
O hospital do Rio é a ponta do iceberg de um sistema cheio de desperdícios e politicagem. A meta de dar saúde universalizada de qualidade parece utópica diante dos problemas internos de gestão do sistema e dos externos, de prioridade política. Prédios atraem mais votos que gente saudável, afinal, quando a saúde está boa, ninguém vai ao hospital e nada se barganha em troca disso. Há poucos dias o prefeito de Leme (SP), Wagner Antunes Filho, o Wagão, do DEM, foi denunciado em reportagem da BAND por obrigar os pacientes do hospital municipal a pedir pessoalmente a ele ou a algum vereador autorização para pegar remédios que são fornecidos pelo SUS. Isso não é caso isolado: a indústria da doença rende votos a políticos e clientes aos planos de saúde privados.
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