O ano de 2015 está sendo formidável em temas para debates curtos e profundos. O caso do Charlie Hebdo em uma semana forçou o debate sobre islamismo, liberdade de expressão, liberdade religiosa, limites a ambos, terrorismo, estado islâmico e botou a Arábia Saudita nos holofotes como centro de irradiação do terror. Agora, em três dias, o debate versou sobre pena de morte e soberania, com o caso do brasileiro fuzilado na Indonésia por tráfico de drogas. Se continuarmos nesse ritmo, talvez não tenhamos mais 500 mil jovens sem ter o que dizer numa redação do ENEM.
Acompanhando as opiniões pelas redes sociais, notei que a classe média praticamente não se posicionou sobre o caso. Os sanguinários de sempre aproveitaram para criticar o governo brasileiro por estar "humilhando o país" ao pedir clemência pelo preso e comutação da pena. Os governistas e defensores de direitos humanos aprovaram a medida pois não temos pena de morte, somos contra ela em todo o mundo e porque é papel de qualquer governo zelar pela vida dos seus cidadãos em qualquer lugar, não importa o crime que tenham cometido. Nossas embaixadas e consulados pelo mundo afora vivem tirando gente da cadeia.
Nos demais, surpresa e silêncio. Não houve aquela enxurrada de opiniões de direita dizendo que "bandido bom é bandido morto". Alguns iam na linha "pena de morte é exagero, pois tráfico de drogas a gente vê todo dia". Não houve aquela histeria da linha "bandido bom é bandido morto". Por que?
Foi tudo muito rápido. A notícia do fuzilamento em menos de 48h, a pesquisa sobre os fatos envolvendo o tráfico de 13 kg de cocaína dentro da tubulação de uma asa delta, dados sobre a Indonésia e sua maioria muçulmana, sobre a rigidez no trato com tráfico e o mais importante: a história e a foto do condenado.
Não era alguém do estereótipo "cara de bandido". Não era não-branco, magrinho como vemos nos noticiários policiais de periferia, não usava bermuda nem tinha cordões ou do tipo que frequenta baile funk. Era alguém com "cara de cidadão". Branco, forte, surfista, filho de classe média com dinheiro, que entrou no tráfico como forma de saldar dívidas. Alguém que poderia ser da elite, ser filho, irmão, amigo de alguém que defende pena de morte para os "pretos, pobres, periféricos".
O brasileiro fuzilado não era do tipo que vai preso no Brasil, onde se apreende um helicóptero de um deputado com 450 kg de cocaína e ninguém vai preso, o caso não é investigado, o aparelho é liberado e fica por isso mesmo. No Brasil a classe média, quando vai para a cadeia, é por uma breve temporada, como no caso do escândalo da Petrobrás. Em alguns dias ou meses consegue uma brecha legal e vai para casa.
A extensão e gravidade dos crimes que cometem com uma caneta é tão ou mais hedionda quanto a de quem vende drogas para comprometer o futuro de crianças e jovens. Essas pessoas roubam as oportunidades, a saúde, a educação, o futuro do país. E é "normal" que vivam entre os "cidadãos", afinal, eles têm a cara de "gente de bem".
A irredutível e inclemente Indonésia, que não deu ao Brasil a chance de salvar a vida de um cidadão seu já que houve casos iguais de uma francesa e um australiano que foram salvos do fuzilamento, fez muito mais que matar um dos nossos. Ela fez ver que tráfico é crime grave. E também fuzila corruptos, que geralmente são "gente de bem". Nossa classe média reacionária tremeu na base. Ao defender pena de morte, redução de maioridade penal, arrisca a si própria, um dos seus parentes e amigos a um governo carrasco que leve a sério tráfico, corrupção e outros crimes de natureza hedionda.
Além do fuzilamento, as autoridades da Indonésia deram uma dura na equipe da Rede Globo, que entrou no país com visto de turista, em vez do visto de trabalho, e estava filmando o porto de onde saem os barcos para a ilha onde são fuzilados os condenados, o que é proibido. Tiveram os passaportes apreendidos. Ou seja, é um país onde até a toda-poderosa Globo não pode sair fazendo o que quer. Isso assusta a nossa classe média coxinha, acostumada a fazer o que quer e bem entende.
O governo brasileiro fez o correto, respeitando a soberania da Indonésia, mas pedindo pelo brasileiro até o fim. A presidente Dilma acionou até o Papa Francisco para apelar ao governo indonésio. A Procuradoria Geral da República também tentou junto aos procuradores da Indonésia alguma forma de comutar a pena. Ao final, o Itamarati publicou uma nota dura e a entregou ao embaixador indonésio no Brasil, e chamou nosso embaixador para dar informações, o que em diplomacia é algo grave. Há outro brasileiro no corredor da morte no país.
A consternação de Dilma foi expressa nas palavras do Ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira : "“A execução do brasileiro cria uma sombra de dúvida, uma animosidade, uma dificuldade na relação bilateral. O Brasil tem princípios que lhes são caros e nós fizemos um apelo de comutação da pena porque nos parecia que, respeitando, evidentemente, o ordenamento jurídico indonésio, acreditávamos que a clemência e a cumutação da pena seriam as medidas esperadas”
Dura lex, sed lex. Isso, para muitos brasileiros, vale apenas para os "diferenciados", por isso o clamor pelo extermínio. Quando enxergam que a lei pode ser para todos, sossegam o facho. Vai ter muito reacionário pensando duas vezes antes de defender a pena de morte a partir de agora.
Segue a nota oficial da Presidente Dilma após o fuzilamento, criticando a pena de morte e o seu uso contra o brasileiro Marco Archer:
A presidenta Dilma Rousseff tomou conhecimento – consternada e indignada – da execução do brasileiro Marco Archer ocorrida hoje às 15:31 horário de Brasília na Indonésia.
Sem desconhecer a gravidade dos crimes que levaram à condenação de Archer e respeitando a soberania e o sistema jurídico indonésio, a Presidenta dirigiu pessoalmente, na sexta-feira última, apelo humanitário ao seu homólogo Joko Widodo, para que fosse concedida clemência ao réu, como prevê a legislação daquele país.
A Presidenta Dilma lamenta profundamente que esse derradeiro pedido, que se seguiu a tantos outros feitos nos últimos anos, não tenha encontrado acolhida por parte do Chefe de Estado da Indonésia, tanto no contato telefônico como na carta enviada, posteriormente, por Widodo.
O recurso à pena de morte, que a sociedade mundial crescentemente condena, afeta gravemente as relações entre nossos países.
Nesta hora, a Presidenta Dilma dirige uma palavra de pesar e conforto à família enlutada.
O Embaixador do Brasil em Jacarta está sendo chamado a Brasília para consultas.
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