terça-feira, 27 de março de 2012

Brasil : O Estado não pode se submeter a qualquer religião

Tentou-se desqualificar com base em preconceito a vitória obtida na justiça por uma entidade de luta pelos direitos de homossexuais do Rio Grande do Sul contra a existência da cruz, símbolo cristão, na sala de julgamentos do Tribunal de Justiça. O símbolo teve que ser retirado. A argumentação é a da laicidade do estado, além do que os cristãos têm visões, nas diversas religiões, contrárias aos homossexuais. Assim como também em relação ao aborto, etc.

O rolo compressor religioso tenta impor, na forma de bancadas legislativas poderosas e da intolerãncia em relação a outros cultos minoritários e aos não-religiosos e ateus, leis, valores, símbolos e práticas pertencentes à sua vertente ideológica. Por tradição, o Estado brasileiro, que se separou da religião na Proclamação da República, ainda tem vícios de um tempo de poder institucional religioso, e depois de 123 anos e da Constituição de 1988 já deveria ter-se adaptado a tempos de laicidade. Segue transcrição de interessante artigo publicado no jornal O GLOBO, do advogado Alexandre Vidal Porto, que coloca de forma qualificada essa discussão.


O BRASIL NÃO É REGIDO PELA BÍBLIA

A Constituição determina que o Brasil é um Estado laico e assegura liberdade religiosa para todos os cidadãos. As autoridades devem dar garantias ao culto de quaisquer religião, sem, no entanto, agir em nome de nenhuma. Em uma democracia, esses princípios são importantes porque preservam o pluralismo da sociedade e protegem o pleno exercício dos direitos individuais.

Trata-se de uma conquista da civilização ocidental que se encontra ameaçada no Brasil. Hoje, fé e política parecem manter uma relação espúria, na qual princípios religiosos contaminam de forma indevida o processo legislativo nacional. Absurdamente, começa-se a achar natural que projetos de lei submetidos à Câmara dos Deputados, ainda que consonantes com os princípios da Constituição e dirigidos ao todo da população - religiosa ou não -  tenham de passar pelo crivo doutrinário das igrejas e fiquem reféns de sua sanção.

Retira-se, assim, de parcela considerável do povo brasileiro, a possibilidade de regular seus direitos constitucionais fora de preceitos bíblicos que não abraçou. Ao mesmo tempo, as lideranças religiosas assumem ares de superioridade moral e alavancam seus interesses políticos baseados em uma ideologia teocrática de exclusão, que desqualifica quem não partilha de sua fé.

Ninguém é melhor ou mais ético porque tem religião. Cada um tem o direito de escolher os princípios morais que nortearão sua vida de acordo com a sua consciência. Essa prerrogativa fundamenta os direitos individuais. Foi conquistada a duras penas, em reação, justamente, ao monopólio ideológico e religioso que, diversas vezes na história, impôs, com resultados terríveis para a humanidade.

Ao longo dos séculos, muitas atrocidades foram cometidas em nome da Bíblia e de outros textos religiosos. Não fosse a garantia da pluralidade democrática, o mesmo deputado que vocifera contra cultos de matriz africana ou direitos reprodutivos das mulheres, poderia ter sido queimado na fogueira da inquisição católica ou morto por apedrejamento como infiel.

O Brasil é um país diverso. E quer continuar a sê-Io. Nele, não deve haver espaço para a intolerância. O Congresso não legisla apenas para quem tem religião. Tem de proteger a todos. Tentar impor uma ideologia religiosa por meio da ação legislativa desfigura nossa democracia. Os religiosos têm o direito de observar seus princípios, mas não podem impingi-los ao resto da população. O Brasil não é regido pela Bíblia. Que os religiosos cultuem o que quiserem, mas que respeitem quem não pensa e não quer viver como eles.

É importante que as autoridades do governo tentem colocar em perspectiva a ação política de grupos religiosos no Brasil. O Estado Brasileiro é laico e deve comportar-se como tal. Em mais de uma instância, minorias sociais têm visto seus direitos individuais virarem moeda de troca. Tolerar a intolerância pode render votos, mams não é uma forma justa de governar.

Alexandre Vidal Porto é advogado.
(Publicado em O GLOBO de 18/03/12)

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