sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Rio : As lições do desabamento

Hoje se pergunta na cidade se há risco de acontecer um desabamento em outros prédios antigos, como os da Av. 13 de Maio. Palpiteiros de todas as vertentes chutam bobagens como "não vai poder ser construído mais nada ali" ou "o prédio se desgarrou do prédio vizinho, onde deveria estar grudado", em especial os repórteres da TV e até profissionais que não têm qualificações de engenharia para opinar com conhecimento de causa. Até a mídia lobista de empreiteiras estrangeiras tirou uma casquinha do episódio, dizendo haver dúvidas sobre a qualidade da infra-estrutura brasileira para a Copa e Olimpíadas. Mesmo não se sabendo até aqui o que aconteceu, algumas coisas podem ficar como lição. Vamos a algumas hipóteses:

- Quando o metrô foi escavado na avenida em frente, pode ter abalado as fundações, ou mesmo a vibração de anos e anos dos trens pode ter feito isso? Ambas as hipóteses têm algum fundamento. Quando se faz uma escavação e não se escora adequadamente as paredes, pode haver fuga do  material que fica sob as fundações, no caso de serem diretas (sapatas, blocos). A vibração de trens também pode adensar solos ou fazer correr material deixando vazios sob esse mesmo tipo de fundações. Não parece ser uma explicação para o que houve, porque naquela região é comum o uso de fundações profundas, em estacas, e esse tipo de problema normalmente dá sinais anteriores, como trincas, desnivelamento de elevadores, portas, etc;

- O prédio não pode ter caído pela idade? Sempre existe essa possibilidade, pois algum material pode chegar ao final da sua vida útil antes do tempo a partir de agentes externos, como a corrosão ou ataque de outros agentes ambientais, como vapores químicos, exposição à água, maresia, etc. Ou falta de qualidade. O enfraquecimento dos materiais também costuma dar sinais com rachaduras, esfarelamentos, exposição de ferragens, etc. Não deve ter sido o caso;

- Pode ter sido explosão de gás? Provavelmente, não, por inexistirem, segundo os relatos, fragmentos lançados à distância ou explosão na hora do deslocamento.

- Pode ter havido falhas na construção? Sempre há essa possibilidade. Vide o caso do edifício Palace II, que desabou em 1998 na Barra da Tijuca. Usaram no concreto areia de praia e água salobra de poço, que contém sal, cujo cloro ataca o cimento e reduz a resistência projetada. Também havia vazios por má vibração, tirando boa parte da resistência. A perícia indicou a falha no dimensionamento de dois pilares que pode ter contribuído para o desmoronamento, além de outras peças onde não foram respeitados os coeficientes de segurança de cálculo previstos em normas. Pela ausência, até aqui, de relatos sobre fissuras, rachaduras e outras ocorrências que normalmente "avisam" que a estrutura está com problemas, não parece ter sido essa a causa. Além do mais os prédios já são bastante antigos, e as normas usadas podem ter sido bem mais rígidas que as atuais.

- Pode ter havido falta de manutenção? Pode, pois as pessoas assumem que um prédio nunca cairá. Dificilmente alguém paga por uma vistoria de um engenheiro especializado para saber se tudo está em ordem com a estrutura, mesmo que sinais evidentes estejam à mostra, tipo "essa rachadura está lá há anos, deve ter estabilizado". É possível que estabilize? Sim, é. Um recalque numa fundação até encontrar uma situação de maior rigidez do solo e a partir daí nunca mais haver deformação é uma possibilidade que, mesmo assim, merece uma apreciação técnica. Para o Rio, a grande lição até aqui é que os proprietários devem fazer vistorias em busca de sinais de problemas nas estruturas, e se os encontrarem, buscar apoio de profissionais habilitados. Não parece ter sido, por ora, o problema dos prédios desabados, pois não houve relatos desse tipo de ocorrência.

- Obras de reforma podem derrubar prédios, ou mesmo casas? Sim, podem. Há algum tempo fiz um post aqui no blog sobre edifícios com alvenaria estrutural feitos para o programa "Minha Casa, Minha Vida", onde moradores se queixavam de avisos que os  construtores deixaram pintados em locais de circulação dizendo que não poderiam ser derrubadas paredes. Os moradores certamente queriam redesenhar suas unidades demolindo paredes que, nesse tipo de construção, são parte da estrutura, recebendo cargas dos andares acima. No futuro algum gaiato pode mandar pintar os avisos, e pessoas se sentirão livres para reformar e trazer riscos ao prédio. No caso de prédios comerciais, como os que caíram, por anos e anos empresas adaptam os espaços às suas necessidades de leiaute. Corta uma viga aqui para passar duto de ar condicionado ou tubulações, tira uma parede ali, sem saber se tem função estrutural, constrói novas paredes sem apoio, etc. Num prédio antigo, construído com normas mais rigorosas, coerentes com a falta de controle tecnológico das épocas passadas, a estrutura aguenta algumas agressões sem emitir sinais, mas novas obras podem continuar o enfraquecimento, podendo num determinado momento uma pequena agressão botar abaixo o prédio inteiro pelo colapso de uma peça. Essa parece a hipótese mais provável até aqui, mas a última obra pode não ser a única causadora do desastre. Pode ser problema do somatório de agressões ao prédio.

- Novas cargas (pesos) podem destruir prédios? Sim, podem. O caso mais conhecido é o do desmoronamento de lajes sob pelo de piscinas, até dessas mais simples, de plástico. Uma piscina de 2.000 litros, com 50 cm de altura de lâmina d'água, descarregará duas toneladas de peso sobre uma área de 4 metros quadrados, ou seja, 500 kg por metro quadrado, bem acima do que usualmente se usa em cálculo de lajes para receber madeiramentos e telhas. Pode haver trincas, afundamento da laje e, no extremo, ruptura da laje com desmoronamento. Nos prédios comerciais é comum as pessoas acharem que um arquivo cheio de papéis é algo inofensivo, mas podem chegar a 200 kg. Um conjunto de arquivos lotados de papel no meio de uma laje em concreto armado de grandes vãos pode ser um perigo. Cofres também. Um terminal de caixa de bancos, desses que são explodidos todos os dias, pesam de 500 a 800 kg. E carros? Há garagens que não foram dimensionadas para aguentar uma frota dessas caminhonetes mais modernas,  e menos ainda se tiverem blindagem. Pode ter havido sobrecarga nos prédios desmoronados? Sim, pode, mas elas sozinhas podem não explicar o colapso.

- Deslocamento de cargas pode derrubar prédios? Dependendo do prédio, sim. Um cofre de uma tonelada andando num carrinho pelo meio de um grande vão pode gerar grandes esforços por onde passar. Uma caminhonete blindada andando numa laje também, apenas pelo seu peso, fora uma eventual carga que possua. Tais estruturas têm seus limites de projeto previstos para usos normais. Pode ter derrubado o prédio? Creio que não. Pelo menos, como causa isolada;

- Abrir janelas e vãos pode ser a causa? Sim, pode. Vi ontem foto mostrando que o prédio mais alto tinha diversos vãos abertos para o lado do prédio de 4 andares, o que pode até ser estruturalmente aceito, mas ofende o direito de vizinhança, já  que aberturas devem distar, no  mínimo, 1,5m da divisa (art. 1301 do Código Civil). A princípio, um prédio feito em concreto armado com pilares, vigas e lajes não necessita de nenhuma parede para manter sua estabilidade nem para receber as cargas projetadas. Tais tapumes representam mais peso sobre a estrutura, e sua retirada, a princípio, colabora para a segurança em termos de sobrecargas. Isso não vale para estruturas onde as paredes têm finalidade estrutural. O que pode acontecer, ao longo dos anos, é que paredes sob vigas ajudem a descarregar cargas pontuais como arquivos e cofres, colocados nos diversos andares ao pé das paredes. É uma coisa que se faz naturalmente, sem questionamento: uma parede sem janelas é ideal para botar armários e arquivos. Uma viga, que é projetada para resistir aos esforços das lajes confrontantes e suas sobrecargas, além do peso próprio e da parede imediatamente acima, pode ficar sobrecarregada com tais móveis colocados junto a elas, tanto no caso de estarem em extremidades (como no caso das paredes cegas laterais, voltadas para outros prédios) como nas divisórias entre salas do mesmo prédio, onde a carga pode acontecer dos dois lados. Nesse caso atípico as vigas podem transmitir parte da carga para a parede abaixo, que descarregará na viga desse andar. Supondo-se que o prédio tenha a mesma finalidade e que todos coloquem cargas junto a uma mesma prumada de vigas, essas paredes de alvenaria podem assumir papel estrutural e causar colapsos à estrutura caso retiradas. Pode ser uma causa do desabamento.

- Um prédio pode cair pelo efeito conjugado de várias causas a partir de uma simples obra? Pode. É daqueles casos como no romance "Assassinato no Expresso do Oriente", de Agatha Christie, onde cada pessoa no trem teria razões para matar uma pessoa, e ao final se descobre que cada uma deu uma facada. Não é difícil alguém bolar um leiaute para acomodar uma empresa num andar comercial e entregar nas mãos de um mestre-de-obras para execução, com um leiaute que prevê a retirada de paredes, sem maiores questionamentos sobre a função estrutural de cada uma delas. Feita a obra, a empresa é instalada e nada de mais acontece. Anos depois entra outra empresa, com outra necessidade de leiaute, e mais reformas são feitas sem o acompanhamento de profissionais habilitados. Aí vem o corte na viga para instalações elétricas, de ar condicionado, etc. E tome abrir janelas e tirar paredes, colocando mais cargas, mal distribuídas. Isso em todo o prédio. A estrutura chia mas aguenta. É como uma corda esticada: aguenta o peso, mas está cada vez mais próxima do limite, até que um dia alguém corta uma das suas fibras e ela se rompe. Quem derrubou o prédio, num caso desses? O seu Zé, que naquele dia fatídico estava furando uma viga com um martelete e cortou a ferragem, provocando todo o desabamento? Claro que não: a culpa é de todos, em especial dos condomínios, que deveriam exigir, para cada intervenção, a anotação de responsabilidade técnica por profissionais de Engenharia ou Arquitetura.

- Outros podem cair do mesmo jeito? Sim, podem. Essa guerra silenciosa que se trava em toda a cidade contra a estabilidade das estruturas pode trazer novos incidentes, em qualquer lugar. A Prefeitura não tem como vistoriar estruturas como se faz com periodicamente com os elevadores. A iniciativa tem que partir da conscientização dos responsáveis pelos condomínios  e pelas obras para a necessidade de fazer obras dentro da legalidade pagando um pouco mais caro para ter acompanhamento técnico qualificado. Isso pode barrar futuros acidentes, mas certamente não irá desmontar as bombas-relógio que já estão armadas por aí, sem hora precisa para estourarem.



3 comentários:

  1. Mais prédios cairão (infelizmente!).
    Nesse Brasil o jeitinho de fazer mal as coisas sempre prevalecerá... (Que se danem os demais, mais "queromeu", somos irresponsáveis )

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  2. Branquinho, parabéns pelo texto! Finalmente leio um comentário baseado na técnica e não em especulações. Você deveria dar entrevistas na TV! Rsrsrs... Abraços! Bartira - BB

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  3. Parabéns! Quero lhe pedir a permissão de repassar o seu texto ao síndico do meu prédio. Estamos tendo diversas obras por aqui e precisamos de alertas.

    Aproveito a oportunidade para fazer um comentário:

    Infelizmente, em adição aos seus ótimos esclarecimentos, enfrentamos um outro tipo de comportamento social pernicioso, no que diz respeito às ARTs. Creio que não basta que um morador consciente contrate um Engenheiro (com “E” ou com “e”) para cuidar de sua obra, apresentando a devida ART. Tenho observado a existência de muitas ARTs que são, a meu ver, absolutamente questionáveis, vez que se apresentam como meramente burocráticas. Além, é claro, de outras tantas “soluções” de ARTs que vemos anunciadas/vendidas nos classificados em diversos jornais de domingo. E você disse bem, as Prefeituras não têm como vistoriar periodicamente, como se faz com os elevadores. Considero boa a sugestão de envolvermos mais os síndicos dos edifícios, via conscientização com responsabilização pelo acompanhamento/orientação das obras particulares que ocorrem nos edifícios. As vistorias periódicas (que as Prefeituras não têm como fazer) poderiam ser feitas pela própria Administração Predial – com equipe orientada – principalmente sempre que ocorrerem obras de reformas particulares. Imagino que isso possa ajudar bastante... atitudes que se somam, objetivando a proteção das pessoas.

    Obrigada, caríssimo Branquinho!
    Um abraço,
    Letícia

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