sexta-feira, 6 de março de 2015

Brasil : Um País de Escrotos?

A história do mundo é a história da luta de classes. Em poucas palavras, em todos os tempos sempre existiu uma classe dominante extremamente minoritária que, pela força da coerção pura ou de instituições sociais manteve para si o poder e as riquezas, além de pautar a vida da maioria explorada, a quem só resta trabalhar e produzir riquezas para a elite. Sobre eles recai o peso dos impostos e todas as limitações à dignidade de vida.

No feudalismo e no capitalismo, só mudam os personagens da parte dos 1,5%
Estima-se nos países capitalistas mais avançados que cerca de 1,5% da população estejam enriquecendo enquanto 98,5% empobrecem. Isso no Brasil, aplicado a 200 milhões de pessoas, significa 3 milhões de pessoas. Se fossem representados no Congresso de acordo com a sua proporção, teriam cerca de 18 parlamentares dos quase 600, ou seja, não teriam poder nenhum. 

Essa limitação numérica obriga a minoria poderosa a estender sua área de influência a outros segmentos, ampliando seus apoiadores para forjar um modelo falsamente democrático. Se algo der errado, garante para si o núcleo do poder institucional. Aí os quase 6 mil prefeitos, 28 governadores, centenas de milhares de vereadores, deputados e senadores não valem nada. Eles têm sempre em mãos o controle das Forças Armadas, dos  supremos tribunais, das polícias, Ministério Público, organizações religiosas e fazem as mídias venderem a idéia de serem os "eleitos", os "meritosos", os "representantes divinos", ou seja, sacralizar sua posição de minoria "de bem", "culta" e "preparada para governar". 

Durante décadas essa minoria não avançou muito na disputa de opinião com as classes dominadas, porque essa disputa de hegemonia encontrava resistências. As organizações dos trabalhadores e classes médias faziam a crítica e mantinham boa parte das pessoas fora da área de influência das idéias da minoria. Se olharmos para trás na história veremos que os golpes aconteceram em momentos onde a luta de classes pendeu para o lado da maioria, que, apesar de poucos recursos, tinha organizações classistas que conscientizavam as pessoas para a realidade. 

Hoje as pessoas se surpreendem com a verdadeira cloaca  que foi aberta de poucos anos para cá, atingindo o ápice nas eleições de 2014 e deixando resíduos sólidos até hoje. Culpa das redes sociais? Sim, em parte, porque as mídias tradicionais ganharam aliados em canais mais próximos das pessoas. E as forças do "andar de baixo", o que fizeram, mesmo tendo mídias quase gratuitas que permitem disputar com os grandes meios de comunicação e os processos de inclusão digital cada vez mais atingem maior espectro de camadas sociais?

A consciência da maioria como classe oprimida
faz a minoria acionar cada vez mais o uso da força
Por que a escrotidão, a mentira deslavada, o boato, a baixaria, estão moldando as visões políticas de mais e mais pessoas que vão às ruas defender radicalmente os interesses dos seus opressores? De onde vem essa perda de noção de classe? 

Ao meu ver, dos governos do PT. Ao diluir o conteúdo classista do programa de governo ao longo do tempo até vencer na 4a tentativa em 2002, o PT confundiu as massas. Governa mas não manda. Quer deixar a pecha de radical defensor dos trabalhadores que o fez crescer antes de chegar ao governo para criar a ficção do "Brasil, um País de Todos". A maior força de oposição, com poder real de mobilização de massas através da participação em sindicatos e movimentos, ao chegar ao governo portou-se como fiadora de um pacto social com a elite para promover pequenos ganhos para os mais pobres. 

Mesmo tendo feito com eficiência alguma distribuição de renda e acabado com a fome, levado milhões de excluídos à perspectiva de vida menos miserável e ampliado as benesses de consumo de uma enorme classe média, sequer conseguiu fazer dessas melhorias a sua marca. Poucos são os que associam a melhoria de vida às ações de um governo que seria dos trabalhadores. Se perguntarmos a alguém que emergiu da miséria nos últimos 12 anos por que sua vida mudou, teremos respostas como "foi Deus quem proveu" ou "consegui por méritos" ou "isso foi uma migalha porque roubam muito e podiam dar mais". Não há identificação das conquistas com um esforço classista por melhor qualidade de vida.  

Por que muitas pessoas perderam a vergonha de defender a
volta dos militares, mesmo sabendo o que significa ditadura?
Ainda há o dificultador: as melhorias aconteceram sem tirar nada dos mais ricos. Essa é mais uma variável sem explicação: apesar de ter reduzido um pouco a desigualdade de renda, os ricos ficaram mais ricos. Os mais pobres é que melhoraram mais rápido com a elevação real do salário mínimo, por exemplo. Sem expropriar ninguém! Baixando impostos! Permitindo todo tipo de luxo, mesmo com prejuízo às contas externas nacionais, como importação de bens de alto valor, viagens, etc. 

E aí, como é que uma classe rica e minoritária que ganhou com Lula e Dilma conseguiu avançar na dominação hegemônica num governo dito "dos trabalhadores", que lhes garante a "paz social" para viver no Brasil, andar nas ruas, viver pacificamente entre o resto do povão, sem ser vista como casta de intocáveis? Como é que uma imensa maioria, que teve no governo "dos trabalhadores" melhoria das condições materiais inédita na história não se identifica com tal governo? Pior, por que assumiu o que há de mais escroto no discurso de ódio da parte mais escrota da minoria?

Fundamentalismo progride em meio à confusão classista
Ah, a corrupção... Essa criação do governo "dos trabalhadores"! Antes de 2002 não existia nada, a não ser em 1954, quando Getúlio foi levado ao extremo do suicídio pela minoria, em 1964 quando a minoria depôs pelas armas Jango e agora quando querem, de forma inédita na história, derrubar Dilma com amplo apoio de massas? Não, não foi a corrupção que derrotou o PT, que governa mas não manda e cada vez mais precisa comprar apoios porque não amplia sua base parlamentar. Foi a omissão na disputa de classes. 

Quem abriu as portas para as cada vez mais frequentes mentiras da direita fazerem maioria nos locais de trabalho? Para deixarem a esquerda acuada, somente tendo apoio se criticar o governo? Perdendo o poder de representação enquanto sindicato junto ao patrão, que agora tem o apoio ideológico de boa parte dos trabalhadores? Lula, Dilma, PT e diversos outros atores, inclusive os que simplesmente se omitiram de criticar o governo pela esquerda sem fazer coro com a direita. 

O PT e seus governos nunca investiram na perspectiva de classe, ou seja, de fazer reformas enquanto se acumula para cada vez mais tirar poder do capitalismo até chegar ao socialismo. Perdeu a visão de futuro, o eixo estratégico. Tornou-se um governo capitalista liberal "bonzinho". Ao perder o referencial na luta de classes e cometer erros dos anteriores, igualou-se demais à classe dominante. Aí ninguém se dispõe a defendê-lo.

Os escrotos perseguem covardemente os derrotados. Qual marca será a sua?
Judeu? Negro? Ateu? Muçulmano? Gay? Petista? Comunista? Nordestino?
Cubano? Feminista? Ambientalista? Sindicalista? Sem Terra? Sem Teto?
Não creio em Dilma dando uma guinada à esquerda para dar combate classista às iniciativas golpistas. Só não é apeada do poder mais rapidamente porque a direita está dividida, com o PSDB querendo novas eleições mas sem Lula concorrendo, talvez pedindo a ilegalidade do PT ou fazendo o "hardcore" do poder forjar a criminalização do adversário, e o PMDB que enxerga agora a possibilidade de fazer Temer presidente. O fato é que perdeu as condições de aprovar qualquer coisa no congresso sem pagar um alto pedágio e ver aos poucos conquistas se desfazerem pela sabotagem econômica e chantagem para tomar medidas impopulares que colocarão o PT num gueto, e os vencedores escreverão na história que foi o pior período político do país. 

O PT é uma sombra do passado. Submisso ao governo,
incapaz de liderar, homologa todas as políticas de Dilma. 
Dilma caminha para ser um morto vivo político. Lula desesperadamente tenta organizar movimentos em sua defesa, mas mesmo quem tem a compreensão do desastre histórico que seria um golpe agora está disposto a lutar por ela. Desta vez a elite não quer apenas pressionar para obter mais vantagens, como juros altos, menos impostos e supressão de direito. Ela se cansou de depender de um governo que nem ela (e muito menos os menos favorecidos) têm controle. Quer o aborto político, uma saída tipo Itamar Franco. Sabe que tem poder para a derrubada por diversas vias. O risco é iminente e real. 

E o resto da esquerda não-petista, onde está nisso? O que se vê é distanciamento como se tanto fizesse um golpe ou deixar Dilma sangrar até 2018. Alguns acham que uma crise com recessão faria bem ao revigoramento da luta de classes, com as pessoas perdendo empregos, renda, sonhos de consumo, etc. É aquela visão da miséria como indutora mecânica da luta por melhores condições de vida. Outros se colocam contra o golpe, avaliando que haveria uma avalanche de revanchismo como em 1964, ou seja, defendeu pobre, é de esquerda, tem que levar tiro, porrada e bomba. 

Se vingar o golpe, seremos um país de escrotos, com a elite fazendo seu papel com ampla colaboração de gente que fustigará e usará de todo tipo de violência contra o colega de trabalho ou vizinho que ousar falar bem de pobres e trabalhadores. Vai ser na base do "Morte à inteligência! Viva a morte!" do fascismo espanhol dos anos 30. 

A elite não vai às ruas. Paga pessoas pobres para representá-las e mostrar ódio.
O fascismo que hoje domina as classes médias e não será por algumas gerações apagado é culpa da omissão dos que deveriam fazer a luta de classes como maioria. O maior impasse hoje é ter que optar entre um governo fraco, títere das forças do atraso mais reacionárias, oportunistas e corruptas que dominam  a superestrutura das instituições burguesas, e a derrubada desse governo e a entrada de um presidente com apoio total da direita para promover a previsível destruição em larga escala de avanços sociais. Sem Dilma reagir a ponto de reconquistar pelo menos os seus eleitores para defendê-la, seu governo terá um final desastroso para a maioria da população, seja agora ou em 2018. 

Dilma precisa vir a público mudar de tática. Tirar do congresso o pacote que mexe com direitos. Estimular a participação social, com ou sem legislação criando Conselhos, abrindo as portas do Planalto a receber as reivindicações de quem luta. Pendurar a conta do ajuste fiscal nos ricos. Da sua parte o PT precisa aprender em cima dos erros cometidos nos movimentos sociais, que precisam ser arejados com democracia. Abrir as entidades à participação mais ampla da esquerda. Voltar a disputar hegemonia de classe nos locais de trabalho, nos bairros, onde se luta, respeitando as demais correntes classistas. Aos movimentos sociais não-petistas cabe organizar grandes manifestações de insatisfação, ir às ruas exigir reforma política, punição a todos os corruptos e levantar as bandeiras por avanços sociais. 

Sem isso, vamos nos preparar para assumir o lema "Brasil, Um País de Escrotos". E aguardar passivamente a chegada da polícia política nos buscar em casa para o linchamento como corruptos, ladrões e tudo mais que a elite conseguir incutir na mente dos seus zumbis teleguiados.



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