Enquanto o Brasil surfa na crise, aumentando empregos, renda, gastos públicos e transferências governamentais, um novo padrão de destruição de economias e acumulação para o capital está sendo praticado nos países mais pobres da zona do Euro : Portugal, Itália, Espanha, Grécia. E outros entrarão no esquema. Até a França já está tentando aumentar a idade mínima para a aposentadoria. Para ver como as coisas acontecem de forma encadeada, aí vai um artigo do jornalista Flávio Aguiar, correspondente internacional da Carta Maior em Berlim, comparando o Consenso de Washington, receituário que FHC nos impôs, com o que chama de Consenso de Bruxelas, em aplicação nos países europeus em crise.
Do Consenso de Washington ao Consenso de Bruxelas
O receituário de Bruxelas para a crise, que já está sendo aplicado, além de à força na Grécia, “voluntariamente” na Espanha, na Itália e em Portugal, vai na direção dos cortes orçamentários, congelamentos e reduções de salários, aposentadorias e pensões, e da adoção de políticas claramente recessivas, “para reconquistar a confiança nos mercados”.
Flávio Aguiar
* Disciplina fiscal.
* Redução dos gastos públicos.
* Reforma tributária.
* Juros de mercado.
* Câmbio de mercado.
* Abertura comercial.
* Investimento estrangeiro direto, com eliminação de restrições.
* Privatização das estatais.
* Desregulamentação (afrouxamento das leis econômicas e trabalhistas).
* Direito à propriedade intelectual.
Este é o decálogo do Consenso de Washington, criado inicialmente sob a batuta do FMI, do Banco Mundial e do Tesouro dos EUA. Passou a ser a receita básica do FMI, primeiro, para a América Latina, depois para outras nações “em desenvolvimento” ou em crise nas suas finanças públicas. A seguir, tornou-se uma espécie de “Maravilha Curativa do Dr. Humphreys” ou de “Regulador Gesteira” para as economias mundiais. Curava de tudo, das dores de cabeça às unhas encravadas das finanças públicas; da prisão de ventre às diarréias nas bolsas d o planeta. Era capaz de fazer um organismo engravidar ou, ao contrário, de servir-lhe de contraceptivo, conforme necessitasse de crescimento (sempre comedido) ou de desinchaço recessivo (sempre excessivo).
As conseqüências desse receituário são conhecidas. Entre outras coisas, pulverizou as economias da Argentina, do México, empobreceu mais ainda as populações já pobres dessa e de outras regiões, atolou a Rússia recém saída do comunismo num pântano de privatizações e corrupção, comprometeu seriamente a capacidade de ação e reação do Estado brasileiro diante das sucessivas crises mundiais, e destroçou as economias asiáticas nos anos de 1997/1998. Pode-se dizer também que nas bordas desse consenso os Estados Unidos criaram seu maior contingente de pobreza, em termos absolutos, de toda a sua história.
Houve reações contra ele e seu império. Não só surgiu o Fórum Social Mundial, como ele se implantou enquanto seu congênere financeiro e financista de Davos via sua influência declinar. No continente asiático, a República da Malásia, que fez tudo ao contrário do que o FMI recomendava, se recuperou antes e de modo mais firme do que a Coréia do Sul e a Tailândia. Um dos resultados daquela crise é hoje o conflito, que só tende a se aprofundar, na Tailândia, entre a população campesina pobre, setores de classe média que querem uma maior participação nas esferas de poder, e a elite que se apóia na brutal repressão dos movimentos pelas Forças Armadas e por uma monarquia constitucional de fachada que disfarça a ditadura. O Brasil só não afundou completamente e até mesmo saiu mais depressa da recente crise de 2007/2008 porque não seguiu completamente a receita, preservando, ainda que não de todo, a Petrobrás e o setor bancário público. Uma curiosidade: o bloqueio orquestrado pelos Estados Unidos ao Irã preservou os bancos iranianos dessa recente crise, o que agora aumenta as d ores de cabeça da secretária Hillary Clinton.
O consenso sobre o Consenso de Washington se implantou pari passo a uma crescente em proporção geométrica, depois estratosférica financeirização da economia mundial, concebida como uma brutal transferência de dinheiro público para capitais privados, sob a forma do (des)controle das dívidas federais, estaduais e municipais, e como um modo de (des)regradamente ganhar dinheiro com a especulação pura e simples, numa espiral que, como efeito colateral, formou uma casta dentro desse sistema através dos bônus e recompensas pagas por quem o administrava para enriquecer poucos e empobrecer ou privar de serviços essenciais muitos.
Esse circo explodiu, como já vinha se esperando, em 2007 e 2008, semeou escombros nas principais economias do mundo em 2009 e preparou uma inflação de desgraças na Europa em 2010. A primeira vítima dessa situação no que antes era vista como uma verdadeira Arca de Noé frente ao dilúvio universal foi a Grécia. Ou melhor, foram os trabalhadores gregos, convocados a pagar a conta dos estragos e rombos produzidos por anos de desregramento nas finanças, sonegação e desconstrução da capacidade de fiscalização por parte do Estado. Tudo isso ficou na conta de que “o sistema de seguridade social grego era custoso demais”. Para recuperar a “confiança” do mercado e dos investidores, chamou-se não só a receita do FMI como o próprio para dentro da arena da União Européia.
Num expressivo artigo publicado no New York Times em 6/5, Peter Boone e Samuel Johnson (este último tendo sido um dos principais economistas do FMI), os autores, depois de analisarem que a aplicação da receita recessiva do FMI ao paciente grego pode matá-lo de inanição, recomendam uma solução alternativa que envolveria:
1) Promover a paridade do euro com o dólar, o que poderia favorecer o crescimento em toda a zona do eur o.
2) A queda do euro poderia provocar uma crise nas letras do tesouro na sua periferia; para conter o pânico, seria necessário criar um fundo de amparo emergencial [essa parte a União Européia pôs em pôs em prática, depois de um dramático confronto entre Sarkozy e Ângela Merkel];
3) Através de um acordo com o G-20 [indispensável nessa altura] manter o euro desvalorizado; sempre que houver risco de insolvência na periferia, comprar as letras desses países.
4) Somente nessa altura, promover a reestruturação das dívidas e da administração dos países mais endividados.
5) Recapitalizar os bancos europeus [que é o que está acontecendo desde agora, com a transferência de fundos da União Européia e do FMI da ordem de quase 90 bilhões de euros para o sistema bancário através da Grécia e da “honra” de sua dívida], mas desde que suas diretorias fossem substituídas. A crise veio de uma incapacidade conceitual do “grupo do euro”, inclusive dos políticos, mas [para os autores] é inegável que os executivos dos bancos foram irresponsáveis e deveriam ser demitidos em massa.
Para finalizar, dizem os autores: “Na medida do possível, as perdas decorrentes deveriam ser compartilhadas com os bancos credores. No entanto, tenham cuidado; os banqueiros são poderosos por uma razão: eles construíram estruturas vitais, mas frágeis no coração das nossas economias. Essas estruturas devem ser desmanteladas, mas com cuidado”.
Mas esse crivo conceitual é muito difícil de implantar e deixar crescer. Vai completamente no sentido contrário de tudo o que se firmou como consenso quando se criou a União Européia, com sede em Bruxelas, e se implantou o euro como moeda única preferencial. O receituário de Bruxelas para a crise, que já está sendo aplicado, além de à força na Grécia, “voluntariamente” na Espanha, na Itália e em Portugal, vai na direç ão dos cortes orçamentários, congelamentos e reduções de salários, aposentadorias e pensões, e da adoção de políticas claramente recessivas, “para reconquistar a confiança nos mercados”.
Saneamento do ralo financeiro em que se transformou o sistema bancário e financeiro? Por ora nem pensar. Um ajuste aqui, outro ali, no máximo.
O que comprova aquele ditado pampiano: “cachorro que comeu ovelha, só matando”.
Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior em Berlim.