Trabalhei numa das empreiteiras que em 1982 participou das obras do sistema de drenagem da Rocinha. Para ter tranquilidade, a empresa negociou com a associação de moradores, fachada do tráfico que já dominava a área, empregando pessoas, inclusive com bons cargos para "seguranças", dando materiais e fazendo algumas obras comunitárias. Estive lá algumas vezes, chegando a presenciar um tiroteio em plena área do Valão, local da obra. Naquele tempo já ouvia relatos da extensão do poder real dos traficantes. Eram o próprio estado. Os assuntos da comunidade, de briga de casais a questões entre vizinhos e a ocupação por novas casas eram tratados pelo alto comando do crime. Sua lei era mais forte que as do país e da cidade.
Na mesma época, a duplicação da Grajaú-Jacarepaguá era outra obra em meio a favelas onde também soubemos que para acontecer sem incidentes, houve concessões ao crime organizado. Outros colegas que também participaram de outras obras em encostas e favelas relatavam o mesmo, tanto no pagamento de proteção pelas empresas como da organização local tendo como poder o crime organizado. Esses fatos marcam a longevidade do controle territorial do tráfico em áreas recentemente ocupadas pelas UPP. Como esse poder não começou ali, e há quem diga que teve origem nos cárceres da Ilha Grande, quando guerrilheiros combatentes da ditadura foram colocados ao lado de criminosos, por volta de 1972. São 40 anos de ditadura do crime. Uma geração inteira de pessoas sofreu com esse regime.
A cidade inteira passou a "respeitar" o crime e seus prepostos. Bastava um moleque descer o morro até o comércio e gritar "o patrão mandou fechar tudo" que o comércio baixava suas portas. Qualquer incursão da polícia era respondida com grandes manifestações dos moradores, tangidos pelos criminosos para colocar nas forças de segurança a culpa por qualquer morte, etc. Enterros de traficantes eram eventos com milhares de pessoas, levadas por veículos controlados por traficantes. Até o governo estadual, em nome de uma equivocada política de direitos humanos, fez acordos globais com o crime, assumindo a ocupação territorial, na política do "polícia não sobe morro, bandido não desce para o asfalto". Isso deu estabilidade ao tráfico no domínio das favelas.
Durante todo esse tempo houve conluio de forças policiais com o crime organizado. Era comum ver colegas falando que se roubassem um carro ou um toca-fitas (coisa da época...), bastava ir à delegacia e oferecer recompensa que tudo reaparecia. Havia, portanto, uma linha direta entre policiais e bandidos, com ampla corrupção por conta dos altos valores negociados pelo tráfico de drogas e armas. Com a corrupção crescente, cada vez mais insaciável, alguns policiais descobriram que poderiam subjugar o tráfico, tornando-se em algumas áreas os verdadeiros chefões.
As milícias foram o ato seguinte, estendendo o poder paralelo a áreas que não eram diretamente afetadas pelo domínio criminoso, como a oferta de proteção em áreas da cidade por empresas de segurança de fachada. Essa promiscuidade chegou a altas esferas do estado, e hoje conta na folha de pagamento com magistrados, parlamentares, executivos, etc. Tudo que está no filme Tropa de Elite 2 é a pura realidade.
Quando as pessoas de fora do Rio assistem às imagens da ocupação da Rocinha, Vidigal e Chácara do Céu pela TV neste domingo, não entendem como os moradores não saem às ruas comemorando, como em cenas de guerra onde o exército de libertação retoma as áreas ocupadas pelos inimigos. Não está claro quem é o inimigo, para a pessoa que passou toda a vida sob o jugo do tráfico. Tudo que acontece lá é muito estranho para os moradores. Havia uma ordem, mesmo corrompida, que mantinha um sistema previsível. Agora o temor é que essa ordem continue, de forma implícita, conviva com uma nova ordem, que dependerá do humor das tropas de ocupação, e mais uma ordem, que é a cidadania.
Essa estratégia de UPPs não é o fim do tráfico, mas fecha uma etapa importante do processo de retomada pelo estado das áreas estratégicas para o crime organizado, que migrará para áreas mais afastadas e mesmo para outros estados, com o "know-how" organizativo, armamentos e recursos que dispõe. Um outro impacto será sentido na área policial, dependente do "arrego" (propina") do tráfico. Segundo o traficante Nem, metade do que arrecadam é pago em propinas à polícia. Estima-se que o movimento de drogas na área sob seu domínio chegava a R$ 100 milhões por ano, apenas com o comércio a partir da área agora retomada.
Quem suprirá os policiais corruptos com os R$ 50 milhões que farão falta, pelo menos em parte, já que o tráfico não acabará, mas será bem reduzido? Esse montante, essencial para o padrão de vida de centenas de corruptos, será retirado de outro lugar, possivelmente na forma de milícias ou de tráfico no asfalto.
Ninguém está livre para comemorar a queda de alguns bandidos em alguns lugares, enquanto o sistema estiver perfeitamente operante, mesmo um pouco mais debilitado. As pessoas continuarão com medo de ligar para o Disque Denúncia, achando que do outro lado da linha tem alguém que passará os dados para os traficantes que matarão o denunciante. O cidadão continuará olhando para a polícia com receio, sem saber que interesses estão ali representados pela farda.
Mesmo que o tráfico fosse reduzido aos níveis "normais", existentes em qualquer lugar do mundo, sem armamentos nem domínio territorial, sem poder real sobre as pessoas, uma nova cultura teria que tomar o espaço vazio. Uma nova geração teria que surgir, confrontando os resíduos do medo desse domínio. Historicamente, o tráfico carioca será lembrado como o cangaço nordestino, idealizado por alguns que viram legados culturais a partir dos saques, estupros e chacinas que cometeram. Essa "cultura do tráfico" vai ficar, até nas relações das pessoas que não moravam nas comunidades, por muito tempo. Para uma cidade como o Rio, que até hoje tem gente que ainda acha que mora na capital federal, dá para ter idéia do espaço de tempo para apagar memórias.
A Rocinha é um símbolo para o crime e para a cidade, assim como o Complexo do Alemão e a Favela da Maré, como sedes das facções que aterrorizam os cariocas. A "queda da Rocinha" alimenta a auto-estima geral e aumenta a sensação de segurança, mas ainda não é suficiente para o cidadão comum, morador ou não da comunidade, confie nas autoridades a ponto de começar um amplo movimento de resistência ao poder do crime. Ainda demorará muito até que as pessoas digam "não" às ordens do tráfico e dos seus prepostos, mesmo que venham de uma criança drogada.
É bom ver esses "donos de morro" enxotados, destituídos dos seus impérios, quase capitanias hereditárias. Há informações sobre a "passagem de poder" para um novo "dono do morro" com a saída do Nem. Esse continuará o tráfico num perfil mais "light", sem armas, sem ostensividade, usando a mão-de-obra residente, afinal, boa parte dos colaboradores do tráfico não tem ficha criminal, são filhos do local, e continuarão morando por lá, identificados pelos moradores com alguém que já foi próximo do poder. No Rio, ser amigo do primo do vizinho do ex-subsecretário de porra nenhuma do prefeito do interior é credencial para carteirada. Vide o "cônsul honorário" do Congo que dava cobertura à fuga do Nem.
O Rio tem o que comemorar. Não temos que olhar para os benefícios em função de Copa, Olimpíada, mas como algo que era devido aos cariocas há décadas. Que essa vitória seja permanente, sustentável, e não mais um arrobo político, para que a cultura do tráfico desapareça definitivamente do nosso cotidiano. Aqui vão algumas matérias do blog sobre o assunto:
http://blogdobranquinho.blogspot.com/2011/11/nem-uma-prisao-varias-polemicas.html
http://blogdobranquinho.blogspot.com/2010/08/rio-estranha-tregua-na-rocinha-e.html
http://blogdobranquinho.blogspot.com/2011/02/rio-policia-expulsa-exercito-do-trafico.html
http://blogdobranquinho.blogspot.com/2009/03/rio-justica-paralela.html
http://blogdobranquinho.blogspot.com/2010/11/rio-trafico-quer-parar-upps.html