Além do governo da Itália e da mídia da direita, não houve mais nenhuma repercussão da decisão soberana do Brasil de não extraditar o escritor Cesare Battisti para o seu país, onde é acusado de ter cometido quatro assassinatos. O mais interessante é que a nota brasileira, além de dar uma merecida porrada na ingerência de Berlusconi na decisão de Lula antes que ela fosse tomada, em nota da chancelaria italiana da véspera, alega que não devolverá Battisti porque pode sofrer perseguições por lá. A nossa mídia se agarrou à versão italiana, primeiro porque é da direita, segundo porque podia render ataques a Lula, embora não tenha feito o mesmo quando a Itália, soberanamente, recusou-se a extraditar para o Brasil o banqueiro Cacciola, condenado por crimes contra o sistema financeiro por aqui, ajudado pelo pessoal do FHC.
Para Berlusconi, neo-fascista que quer parecer democrata, isso é intolerável: como pode o Brasil dizer que na Itália a justiça não é justa, e que se persegue e pode-se até matar um preso político? Bem, isso não foi dito na nota brasileira, mas no despacho do então ministro da Justiça Tarso Genro, no início do ano, quando concedeu refúgio a Battisti. Genro considerou questionável a aplicação retroativa de uma lei italiana para atingir Battisti, que gerou uma condenação a ele a partir de delação premiada de outros acusados, e uma sentença prescrita. Para melhor entendimento, reproduzo abaixo um trecho do artigo "O que o noticiário não revela sobre o Caso Battisti?", publicado por Celso Lungaretti no Portal Luiz Nassif:
"... Na verdade, o Brasil foi até generoso, pois certo mesmo estava o ex-ministro da Justiça Tarso Genro, ao conceder o refúgio humanitário a Battisti porque ele não foi sentenciado num verdadeiro julgamento, mas sim num linchamento togado.
Face ao desafio das organizações armadas de esquerda na década de 1970, o Estado italiano reagiu, segundo Genro, "não só aplicando normas jurídicas em vigor à época, mas também criando 'exceções' (...) que reduziram prerrogativas de defesa dos acusados de subversão e/ou ações violentas, inclusive com a instituição da delação premiada, da qual se serviu o principal denunciante" de Battisti.
O ministro brasileiro utilizou uma citação do maior jurista italiano do século passado, Norberto Bobbio, para caracterizar a cultura de abusos contra os direitos humanos que prevaleceu durante os anos de chumbo:
"A magistratura italiana foi então dotada de todo um arsenal de poderes de polícia e de leis de exceção: a invenção de novos delitos como a ‘associação criminal terrorista e de subversão da ordem constitucional’ (...) veio se somar e redobrar as numerosas infrações já existentes – ‘associação subversiva’, ‘quadrilha armada’, ‘insurreição armada contra os poderes do Estado’ etc. Ora, esta dilatação da qualificação penal dos fatos garantia toda uma estratégia de ‘arrastão judiciário’ a permitir o encarceramento com base em simples hipóteses, e isto para detenções preventivas, permitidas (...) por uma duração máxima de dez anos e oito meses".
De um lado, os mais gritantes absurdos jurídicos -- como essa hipótese kafkiana de se manter um suspeito preso, sem qualquer condenação, por mais de uma década; e a instituição de leis com efeito retroativo, a exemplo da que serviu para condenar Battisti.
Do outro, a tortura grassando solta, como também destacou Tarso Genro:
"Determinadas medidas de exceção adotadas pela Itália nos 'anos de chumbo' (...) ressoam ainda hoje nas organizações internacionais que lidam com direitos humanos. A condenação a determinados procedimentos e penas motivou, de um lado, relatórios da Anistia Internacional e do Comitê europeu para a prevenção da tortura e das penas ou tratamentos desumanos ou degradantes e, de outro, a concessão de asilo político a ativistas italianos em diversos países, inclusive não europeus".
O motivo maior da decisão soberana do Brasil, ao salvar Battisti da vendetta neofascista, foi o de a Itália estar querendo fazer cumprir uma sentença (já prescrita!) decorrente de uma farsa jurídica, montada a partir de leis de exceção, de delatores premiados atirando suas culpas nas costas dos companheiros e de magistrados que engoliam até procurações forjadas para darem aparência de legalidade à condenação de um réu ausente. E isto num clima de intimidação, coerção e maus tratos generalizados..."
Nenhum comentário:
Postar um comentário