Acho que a melhor iniciativa visando o resgate do Natal como festa humana e solidária foi a campanha "Natal sem Fome", iniciada em 1994 pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho. Ao afirmar a existência da fome e da exclusão no Brasil, e alertar para a desumanização das pessoas que sequer teriam o que comer no Natal, enquanto os mais abastados faziam a orgia de consumo, fez com que muita gente abrisse os olhos para a realidade cruel da desigualdade social e doassem alimentos. Pena que a grande maioria das pessoas colaborem como se pagassem um pedágio rumo ao paraíso, por arrependimento ou culpa, e que o marketing tenha se apossado da iniciativa para angariar ganhos de imagem a empresas e pessoas que, muitas vezes, são as responsáveis pela miséria.
Vivi festas de Natal na infância onde se comemorava o nascimento de Jesus e Papai Noel realmente existia, e tudo era muito misterioso e meio mágico. Minha família, muito católica, tinha rituais que começavam com a montagem de uma enorme, enfeitada e iluminada árvore de Natal na sala da casa dos meus avós maternos, onde se fazia a grande festa anual, logo após o feriado de Finados. Nunca antes, pois era pecado, e se desmontava até o dia de Reis, em janeiro, pois se passasse também era pecado. Os balagandãs, coloridos e em diversos formatos, eram de vidro, e as lâmpadas colocadas uma a uma. Também tinha o presépio, com figuras em cerâmica que a criançada gostava de brincar, e as cestas natalinas que ficavam sobre um grande armário na sala onde havia a grande concentração da festa.
Dias antes da festa meu avô comprava um peru vivo, que ficava no fundo do quintal, onde era torturado pela criançada que assoviava para fazê-lo cantar, o tempo todo, irritando os mais velhos e a vizinhança. Até nos diziam que o bicho poderia morrer se a gente ficasse provocando, ou que alguém poderia roubar o animal porque saberiam que estaria ali pelo barulho. Na véspera da festa era adicionada cachaça na água, e o bicho ficava doidão, sorumbático, esperando pela execução no dia seguinte, que era assistida por todos os pequenos com muita curiosidade. Paralelamente, minha avó coordenava uma equipe de tias, irmãs, primas e empregadas que faziam os bom-bocados, queijadinhas, fios de ovos e rabanadas que enfeitariam a mesa da ceia.
Eu, meus irmãos e primos, que totalizavam cerca de 12, dependendo da época (toda hora nascia mais um), fazíamos as listinhas de pedidos de presentes e as entregávamos aos nossos pais. E criava-se a expectativa, que só terminava na madrugada do dia 25 de dezembro, quando meu avô abria a porta da sala de estar, que era lacrada o tempo todo, e de lá tirava os sacos brancos de pano com os nomes de cada um dos presentes à festa. Ao abri-los, vinham as alegrias pelo que recebemos e as frustrações pelo que pedimos e não ganhamos (as listas eram enormes). Se vinha muita roupa e pouco brinquedo era ruim. Imediatamente os pacotes eram abertos e brincávamos a madrugada toda, enquanto os adultos, depois de uma reza à meia-noite, bebiam e comiam à vontade.
Com o tempo, íamos descobrindo que Papai Noel não existia e a festa perdia muito do sentido, pois o mundo adulto não tinha muitas fantasias. Pairava no ar uma obrigatoriedade do comparecimento, imposta pelo conservadorismo dos meus avós, sendo uma desfeita grave não ir lá na véspera de Natal. Essa obrigatoriedade vinha junto com a religião, da qual alguns também começaram a se afastar com o tempo e maior esclarecimento. Cada um tinha que ir às outras festas antes, e bater o ponto lá antes da meia-noite. Aquela festa, que enquanto crianças achávamos mágica, era uma camisa-de-força para os adultos. E foi-se esvaziando à medida que as crianças chegavam à adolescência. Com a morte do meu avô em 1977, que era o patriarca, começou o cada-um-por-si.
Do Natal obrigatório em família passamos ao Natal com os mais chegados, amigos e parentes, mesmo que boa parte não tivesse mais qualquer convicção cristã, nem seguisse os seus rituais, virando apenas um momento de encontro de pessoas queridas, favorecido pelo feriado. Comer e beber muito e trocar presentes em amigos-ocultos, sem reza nem Missa do Galo passaram a ser o novo formato. Passou a ser um encontro de fim de ano para reencontros, avaliações e perspectivas. Esse é o melhor formato, que pratico até hoje, especialmente em Brasília, que é terra de migrantes temporários sem raízes, e a gente junta um grupo de desgarrados e faz a confraternização.
Veio então o Natal corporativo, aquela aberração onde se obriga ao convívio e às brincadeiras um bando de gente que muitas vezes não se topam, nas festinhas do patrão. Quem não for, fica mal visto. Nos últimos tempos o pessoal de Recursos Humanos tem se aprimorado muito em fazer eventos espetaculosos, pseudo-solidários (exigem doações para os pobres mas excluem das festas o pessoal de apoio, contratados, estagiários, etc) e principalmente políticos, abertos à bajulação dos chefes e à fofoca pós-evento.
Hoje a gente vê um marketing exacerbado sobre as compras de Natal, com forte estímulo ao endividamento que penalizará as pessoas quando entrar janeiro e tiver que pagar, além do cartão e carnês, a matrícula e material escolar dos filhos, IPVA, IPTU, e mais uma porção de despesas sazonais que acontecem nessa época, vão até o carnaval e rendem para o resto do ano as bolas de neve de juros de cheques especiais e empréstimos. A irracionalidade chega a ponto de crianças absolutamente miseráveis preferirem ganhar um brinquedo barato a um prato de comida.
O sentido de fraternidade da festa já era, para a grande maioria, e passa prevalecer o sentido consumista, não escapando nem a ceia, que de santa passou a significar orgia gastronômica para os que podem mais adquirirem pecaminosas calorias. Muitas pessoas ficam deprimidas com isso, e sequer participam de qualquer evento. Creio que uma pesquisa entre crianças perguntando pelo significado do Natal teria como um dos resultados mais freqüentes tratar-se do aniversário do Papai Noel ou dia de ganhar presentes. A comemoração do nascimento de Cristo está sendo esquecida como motivação principal para a festa dos cristãos, mesmo entre eles.
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