A cada dia o lamaçal dos grampos do jornal inglês "News of The World" fica mais fluido e mal-cheiroso. Já caiu o alto comando da Scotland Yard, a polícia londrina, porque contrataram como assessor um jornalista desse jornal. Agora estão fazendo pressão em cima do primeiro ministro Cameron, que também teria um assessor ligado ao jornal. Ontem apareceu morto o jornalista Sean Hoare, que delatou o esquema de grampos praticado pelo jornal.
Jornalista não é Deus
Escrevi, hoje, no post "Lula foi rápido no gatilho" que a mídia deveria refletir sobre a conveniência de publicar conteúdo obtido por meios ilegais. Grampo feito sem autorização da Justiça é crime. Deve ser denunciado. Mas está certo transcrever uma conversa criminosamente grampeada?
Alguns leitores me cobraram mais explicações a respeito.
Segue um dos capítulos do meu livro "A arte de fazer um jornal diário" publicado pela Editora Contexto. Acho que ele resume melhor o que penso sobre o assunto.
"O Correio Braziliense deixou de publicar algumas reportagens que produziriam grande impacto entre os leitores desde que adotou seu Código de Ética.
Quer dizer que o código impede em determinadas circunstâncias que se publique reportagens capazes de repercutir intensamente? E de vender jornal?
A resposta é sim. E a razão muito simples: em alguns casos, o repórter só obtém informações se deixar de lado o comportamento ético ditado por códigos profissionais ou por sua própria consciência. A ética deve prevalecer até mesmo sobre a obrigação que tem o jornal de revelar o que possa interessar ao leitor.
Um dos artigos do código do Correio, por exemplo, proíbe que o jornalista publique informações obtidas por meios considerados fraudulentos. Um desses meios é ter acesso a informações fazendo-se passar por outra pessoa. Ou negando que seja jornalista. É uma prática corriqueira na imprensa brasileira. E em grande parte da imprensa mundial.
A pretexto de que o interesse do público está acima de tudo e de que a imprensa existe para informá-lo, jornalistas roubam documentos, se apresentam sob falsa identidade e gravam conversas às escondidas. Jornalistas que agem assim se consideram acima das leis.
Em agosto de 1998, a repórter de uma revista de circulação nacional testemunhou a confissão de vários crimes feita por um suspeito diante dos advogados dele. Confissão protegida, pois, pelo sigilo que resguarda as informações dadas por uma pessoa a seus advogados.
O suspeito não sabia que entre os advogados havia uma jornalista. Até aquele momento ele negara à polícia a autoria dos crimes.
Pressionado depois pelos policiais e informado de que a confissão ouvida pelos advogados se tornaria pública dentro de algumas horas, o suspeito finalmente confirmou tudo.
Num caso como esse, justifica-se o procedimento usado pela jornalista? Foi legítimo? Foi ético? Valeu a pena o ardil? Qualquer ardil vale a pena?
A televisão costuma apelar para o uso de gravadores e câmeras escondidos que registram diálogos entre bandidos e jornalistas, esses quase sempre fingindo interesse em comprar alguma coisa dos primeiros. Se o telespectador não reconhecer o jornalista e sair da sala antes que fique claro quem é quem, poderá imaginar que assistiu a um diálogo entre dois bandidos.
Costumamos dizer que enquanto médico pensa que é Deus, jornalista tem certeza.
Jornalista não é Deus. Não está dispensado de respeitar a Constituição e as demais leis do país. Não tem mandato conferido por ninguém para atuar ao arrepio de códigos e normas socialmente aceitas.
A denuncia de um ato criminoso não justifica uma prática criminosa."
http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2008/09/02/jornalista-nao-deus-123802.asp
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