Justo quando o ditador Muamar Kadafi bate às portas (aliás, explode as portas) do maior reduto oposicionista, Benghazi, depois de uma campanha de resistência e retomada de força desproporcional à dos rebeldes, a ONU resolve aprovar o uso da força para defender o povo líbio. O maior obstáculo à intervenção foi a postura dos Estados Unidos, que enrolou até onde pode a resolução por não ter interesse em se envolver numa nova guerra. Votou a favor, mas deverá deixar a "guerra quente" com a França e Inglaterra, adotando postura secundária.
Kadafi não deixou barato, e ameaçou atacar o que vir pela frente no Mediterrâneo, como retaliação. O seu filho, Saif al Islam, que tem discurso mais radical, disse que iriam invadir Benghazi sem piedade, preservando os civis, e depois da resolução disse que agora só iam cercar a cidade para exigir a rendição.
O Conselho de Segurança da ONU aprovou ontem o uso de intervenção militar para defender vidas e pessoas, o que dá margem a qualquer coisa. O governo líbio, depois da resolução, disse que iria cessar todas as atividades militares para preservar civis, proteger estrangeiros e seus bens. O discurso da França é radical: dar apoio aos rebeldes para derrubar Kadafi, mesmo diante da situação de fato bem mais adversa.
O governo francês corre atrás do prejuízo. O filho de Kadafi veio a público dizer que o presidente francês Sarkozy é ingrato, porque a Líbia botou dinheiro na sua campanha eleitoral, o que será um prato cheio para a oposição francesa fazer escândalo, pedir CPI, etc. A França, no momento que os rebeldes estavam avançando, passou a reconhecer o Conselho Provisório rebelde como legítimo governo líbio. Apostou na vitória rebelde querendo ter mais influência e negócios com o novo governo. Perdeu a aposta, e agora pode envolver o país numa aventura militar, com reflexos em terrorismo interno, etc. O Partido Socialista Francês é favorável à intervenção francesa nos termos da resolução da ONU (proteger vidas e pessoas). O site do Partido Comunista Francês não tem nada sobre o assunto.
Na melhor hipótese, tendo sangue frio, a proposta da ONU servirá para negociar a retirada das lideranças rebeldes entrincheiradas em Benghazi ou mesmo manter a cidade como um enclave rebelde cercado por tropas do governo, enquanto se inicia um processo de negociação com Kadafi sobre garantias de direitos individuais, anistia, etc. Uma saída honrosa para as superpotências, que apostaram na queda de Kadafi e agora vão ter que aturá-lo.
A resolução da ONU teve 10 votos a favor e cinco abstenções (Brasil, India, China, Russia e Alemanha). Nenhum voto contra. Implicitamente, todos aprovaram a quebra da soberania líbia, uns querendo o aumento da escalada de violência para derrubar Kadafi em defesa dos seus interesses imperialistas, outros questionando isso, não aprovando o regime existente, mas entendendo que o uso de mais força militar aumentará a tensão na região.
É um precedente ruim, porque, a critério do que se entenda como "governo anti-democrático e tirano", nenhum país do mundo estará a salvo de intervenções estrangeiras com o aval da ONU. Votar contra a resolução seria apoiar Kadafi. Votar a favor, detonar o princípio da auto-determinação dos povos. Os BRIC e a Alemanha ficaram no muro, nem apoiando o regime líbio, nem os opositores, nem a quebra da soberania.
Há muito o que debater dessa crise líbia, a começar pela postura intervencionista das superpotências em apoio aos rebeldes, que deu a Kadafi o discurso da defesa da soberania para reaglutinar suas forças e aplicar o contragolpe. Os revoltosos também pecaram muito, aproveitando-se da onda de insatisfação que derrubou dirigentes no Egito e Tunísia, mantendo os regimes vigentes, achando que Kadafi era tão fraco quanto eles. Erraram no "timing" da revolta e agora, caso sejam totalmente derrotados, partirão para a luta interna entre as diversas facções em busca de responsáveis pelo fracasso.
Um atraso histórico para o povo líbio, tanto pela truculência de Kadafi, pela atitude internacional e pela incapacidade política dos rebeldes de organizar um movimento vitorioso na hora certa. Digo isso agora, porque a vitória de Kadafi parece ser a tendência, mesmo com a suspensão das atividades militares e abertura de negociações. Pode ser que daqui a pouco um governo qualquer resolva tomar atitudes militares precipitadas que transformem o Mediterrâneo numa zona de guerra ampliada. Kadafi tem mísseis para alcançar a França e a Itália, em caso de desespero.
Nenhum comentário:
Postar um comentário