domingo, 24 de outubro de 2010

Serra : a colheita do ódio

Quem ganha eleição é a economia. Quando o Plano Cruzado fez seu efêmero sucesso, Sarney elegeu uma esmagadora maioria no congresso e nos governos estaduais. Collor e Lula em 1989 disputaram as ruínas da hiperinflação de Sarney, e o candidato oficial, Ulysses Guimarães, mesmo com todo o carisma e projeção da Constituinte não conseguiu 10% dos votos.

Quando Itamar fez o Real e esse pareceu um plano estável, elegeu FHC, que se reelegeu antes da falência do projeto. Serra perdeu a eleição para Lula porque o Real quebrou duas vezes o país, e nem toda a privatização resolveu seus problemas estruturais.

Lula se reelegeu ainda explorando a herança maldita de FHC e colhendo os primeiros resultados dos programas sociais. E agora, com resultados excepcionais na economia, Lula deveria eleger sem problema sua sucessora. Isso não está acontecendo, e haverá uma semana para a campanha de Dilma tentar se alinhar às expectativas que seriam mais normais.

Como Lula tem 81 % de aprovação, e Dilma apenas 54%, em votos válidos? Por que essa diferença? É nela que está o sucesso da campanha de Serra, ou a deficiência da campanha de Dilma.

Ambos os candidatos têm deficiências de imagem. Dilma parece fazer um grande esforço para superar a timidez do seu perfil de técnica eficiente. Serra tem dificuldade de se fazer convincente, e parece todo tempo dizer que fez mais do que fez e prometer mais do que pode realizar. Serra fala descaradamente em fazer projetos que estão no PAC. Dilma não o faz com tanta credibilidade, jogando números globais mais focados na infra-estrutura que no cotidiano das pessoas. Serra fala em concluir metrôs de algumas cidades, já previstos no planejamento de Dilma, que fala em concluir a ferrovia Norte-Sul e a Transnordestina, fundamentais à matriz de transporte de cargas, mas onde ninguém vai andar.

Em termos de história, Serra tem muitos pontos obscuros não explorados adequadamente pela campanha, e sua campanha o coloca como a continuidade do Serra da UNE de 1963, como o homem de esquerda, corajoso, que deu motivos a ser perseguido pela ditadura. E o lado realizador, que faz parecer que o mistério da criação do universo está resolvido: antes do Big Bag, havia Serra! Dilma coloca sua trajetória com um grande buraco desde a prisão na ditadura até reaparecer na prefeitura de Porto Alegre.

A distorção do passado de Serra e a falta de conteúdo de realizações ao longo da história de Dilma é um dos fatores principais da sua supervalorização. A campanha de Dilma não compreendeu isso, e não bateu nas incoerências. Serra, que não era comunista nem socialista, mas da Ação Popular, grupamento com origem na Igreja Católica que na época colaborava com o lado pró-americano na guerra fria, teve um papel duvidoso na aproximação com Goulart, mais para um infiltrado pró-americano que para um revolucionário. A AP disputava eleições na UNE contra as chapas oriundas dos partidos comunistas.

Faltou explorar mais a mentira que é a vida política de Serra. Ele não é formado em nada, assim como Lula, mas passa por doutor. Teve favorecimentos incríveis ao longo da vida, como entrar para uma pós-graduação no Chile sem graduação, ocupar cargos em organismos multilaterais, fugir do matadouro do Estádio Nacional com uma carteirada, segundo ele mesmo, enquanto embaixadores de vários países sequer conseguiam se aproximar do estádio para tirar os estrangeiros.

A biografia de Serra oculta a figura do embaixador sueco Harald Edesltam, considerado o "Schindler sueco", pela atuação heróica na salvação de perseguidos durante o golpe de Pinochet. Ele conseguiu libertar, no local onde Serra estava, com o mesmo oficial que Serra disse ter aplicado o "caô" para sair, 84 pessoas, entre uruguaios e brasileiros. Essa sueco, ao ver que a embaixada de Cuba seria bombardeada pelos militares, correu lá com a bandeira da Suécia e declarou o local como extensão da embaixada da Suécia, impedindo a morte de centenas de pessoas que estavam lá. Teria Serra sido libertado por Harald, ou preferiu contar vantagem como o cara que salivou o Major Lavanderos como quem: diz "olha, vou dar uma saída, e amanhã eu volto para vocês me fuzilarem, ok?". Reconhecer ajudas não é de Serra, o todo-poderoso. Lavanderos foi "suicidado" dois dias depois disso.

Saiu do Chile para os Estados Unidos como se não devesse nada a Tio Sam, autor dos dois golpes militartes, com bolsa de estudos e benesses incompatíveis com as de um esquerdista na época, mas coerentes com as de um colaborador americano. Veio para o Brasil direto para a UNICAMP, junto com FHC e foi pulando de galho em galho atrás de oportunidades para si, sem terminar nenhum mandato. Essa é a realidade que a campanha de Dilma não mostrou para desconstruir a farsa que é o candidato adversário.

Dilma não explorou sua ausência no período de mais de 15 anos desde que saiu da prisão até retornar à política. Não mostrou as cicatrizes da tortura, seus efeitos psicológicos nefastos duradouros, sua fragilização e posterior volta por cima. Isso pareceria fraqueza, mas mostraria uma pessoa mais humana que a construção de marketing de executiva eficiente esconde. Serra não tem isso para mostrar. Parece um deus, sem defeitos, sem incoerências. E sem cicatrizes também, porque sua trajetória é a de um oportunista, que jamais correu riscos reais ou sentiu as dores da injustiça.

Serra mente sobre a família. Seu pai era dono de banca no Mercadão em São Paulo, onde o único sinal de pobreza é a roupa meio suja dos estrangeiros que trabalham com hortifruti. No mais, quem tem banca ali nunca passou sufoco, e os mais antigos acumularam bom patrimônio. Mas Serra diz que era pobrinho, coitadinho. A campanha de Dilma, buscando ser propositiva, passou por cima de todo esse rosário de mentiras.

Lula tem o corpo fechado em relação à mídia golpista, que não o destruiu desde que sua cabeça apareceu sobre a da multidão nas primeiras greves do ABC, na década de 70. A perseguição é implacável a ele e a tudo que criou, como a CUT e o PT. São quase 40 anos de mentiras contra Lula, cotidianas, sementes plantadas nas mentes para desconfiar dele e das coisas que faz. Lula conseguiu driblar isso, e boa parte da credibilidade que tem hoje tem essa componente, de resistente, de batalhador, que mesmo os adversários reconhecem. Os resultados da economia foram mascarados e combatidos cotidianamente pelas Mírians, Mervais e outros advogados da visão mais conservadora do capital.

Dos 81% de Lula temos que tirar essa componente pessoal, difícil de aferir. Nas suas duas eleições vitoriosas, teve que ir ao segundo turno, sem o lastro das realizações econômicas de hoje. Falou pelos mais pobres, e uniu um arco de alianças que dialogavam com o setor majoritário da população. E não teve 51% no primeiro turno. Seus 81% não são confrontados com ninguém, são absolutos. Quanto teria Lula se fosse candidato hoje? Não seriam os mesmos 81%, porque apareceriam outros fatores, estes que Dilma está tendo contra si hoje, semeados ao longo do tempo.

Até que ponto os votos de Dilma são a transferência de Lula? Não creio ser honesto atribuir ás limitações da candidata a diferença entre o que tem de votos e a aceitação de Lula. Mas acho insuficiente que não tenha ganhado o primeiro turno, deixando margem para a inflação da campanha de Marina para livrar Serra da derrota certa. O flanco aberto, no meu entender, veio do início da colheita de terror e ódio que Serra faz hoje: uma parte do eleitorado que votou em Marina viu Serra e Dilma como "igualmente ruins", e fez dela o seu Tiririca, o voto de protesto. Chegou a 20% com uns 3% do PV, 8% seus, e o resto desse tipo de eleitor, que com as ferramentas adequadas Serra arrebatou. Se 32% no primeiro turno, pulou para a casa dos 42%, onde parece estabilizado.

A campanha de Serra está aproveitando com muita "expertise" todo o ódio infundido ao longo desses 40 anos contra Lula, CUT, PT e a esquerda em geral, mesmo a que tenta se diferenciar no voto nulo. Na hora que a direita fechar o tempo, todos se encontrarão na cadeia. Basta ver como eles e seus apoiadores enchem a boca de saliva ao falar PT (o petêeeeeee), como se referindo a uma doença, ao demônio. E usa o mais descarado machismo, presente na sociedade, para colocar a supremacia do "homem poderoso" contra a "mulher frágil", presente no bordão "ela não vai aguentar". E potencializa o tabu do aborto também como arma contra o direito das mulheres serem donas dos seus próprios corpos, mesmo com a flagrante hipocrisia da sua vida pessoal.

Hoje vejo pessoas que por todas as razões deveriam apoiar Dilma falando do mesmo jeito, com profundo ódio, mesmo sem saberem porque. Imitação de exemplos que a toda hora a TV exibe. E que não tem, da outra parte, praticamente nenhum combate, porque a esquerda não se une contra a direita, tanto por contradições de pontos e vírgulas como por ideológicas, e até de fisiologismo.

Como Serra é maquiavélico e principalmente oportunista, quer ganhar as eleições mesmo que não tenha que respeitar tudo o que disse ao longo da sua falsa história. Busca os nichos do terror, do medo, do ódio e do preconceito para se aliar. Potencializa no povo pobre e na classe média um ódio de classe, de horror aos que questionam as injustiças sociais, de perseguição aos "inimigos do povo" com a eficiência de um Goebbels ou Mussolini. Não aceitam que os "subalternos" lhes digam o caminho correto. E levam com eles muita gente deficiente culturalmente, mentalmente e oportunistas como o seu líder, em busca de se darem bem pisando os pescoços da multidão onde estão imersos.

Ao ódio aos pobres e suas lideranças, cultivado pela imprensa da direita, está a promoção, no mesmo período, do sucesso individual, do modelo cultural norte-americano, dos "self-made men", dos "winners" contra os "loosers", hoje presentes na juventude alienada da política. A elite da direita quer ser a própria cultura, os próprios valores que cultivam mas não realizam. Querem que as mudanças sociais sejam sempre subprodutos das suas benesses, e não concessões por demandas dos do andar de baixo.

Serra está conseguindo dividir o país pelo ódio. Seu corte é vertical, atraindo gente de todos os segmentos para odiar pessoas dos seus próprios segmentos. Não é o tradicional corte de classes, de pobres contra ricos, mas de pessoas que querem se dar bem pisando nos seus semelhantes. Para eles, privatizar o pré-sal é uma bobagem, algo que "se eu estivesse lá ganhando dinheiro com isso também faria". Não faz sentido o discurso republicano, de interesses nacionais, distributivo.

Pelo contrário. Serra consegue aprofundar o discurso da prosperidade individual acima da coletiva como Lula nunca fez. É um emergente, um novo-rico, desses que sobe deixando um rastro de podridão e depois contrata um jornalista para escrever uma biografia nobre. De empresa que destrói irreversivel e maciçamente o meio-ambiente, e depois faz "balanços de sustentabilidade" supervalorizando as esmolas que concede em projetos midiáticos. Serra é esse modelo de gente, que não constrói por propostas, mas pela destruição dos seus adversários. Para a mídia do capital, isso é o normal, não há conflito.

O novo nisso tudo é o corte vertical que a campanha de Serra faz na sociedade. Hitler não construiu o ódio aos judeus, aos ciganos, aos negros e aos comunistas em poucos anos. Aproveitou sementes históricas, desde os "pogroms" da humilhação aos judeus à negação de alma pela Igreja aos negros e índios, à discriminação histórica aos povos nômades. Fez um soldado "ariano" odiar um soldado "não ariano", um operário "alemão" odiar um operário comunista, um empresário "católico" odiar um empresário judeu, alcançou o poder e nele se manteve pelo acirramento desse ódio, criando as bases para o extermínio humano, que, no caso dos judeus, era secundário à apropriação material das suas propriedades, nem que fosse um dente de ouro. Hoje Serra quer fazer da estrela do PT o símbolo do ódio. Hitler também usou o ódio a uma estrela, a de Davi, de seis pontas, para atingir o topo da sua "carreira".

Um comentário:

  1. Branquinho,

    sobre seu artigo, segue diálogo num grupo de discussão na internet que participo:

    Amigos, a maioria dos companheiros/as do meu grupo político do PT saiu do partido e foi para o PSOL. Da minoria que foi voto vencido, alguns não acataram a decisão e ficaram no PT. Hoje, vendo o debate que continua sendo feito no país, que o Fernando Branquinho mostrou com nitedez em seu artigo "Serra: a colheita do ódio" http://blogdobranquinho.blogspot.com/2010/10/serra-colheita-do-odio.html, conclui-se que o PT ainda tem muita energia e vigor. Elles não tem ódio do PSOL, nem do PSTU (a primeira experiência organizada de saída do PT). Ao contrário. Elles ignoram esses partidos. Elles odeiam é o PT. Elles gostam do governo do PT, que tem 82% de aprovação popular. A vida delles melhorou. Alguns delles se beneficiaram dos concursos públicos (que não existiam mais) nas empresas públicas em que trabalham e odeiam. "Ou são ricos ou são pobres bobos"*. Enquanto elles odiarem o PT acho que vou ficar por aqui mesmo. Daqui a pouco conto um diálogo que tive ontem com um velho conhecido antes da caminhada em Camburi. Beijos, Tv²L.
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    et: * a frase é seu deoclécio, feirante, que está vendendo como nunca


    Intolerância

    É algo que me assusta!
    No supermercado, a madame destrata o açougueiro ou a moça do caixa, apenas funcionários.
    No hospital, a doença é sempre mais doente do que a dos que chegaram antes. A incapacidade de esperar as filas...
    O destrato de pais com professores. A humilhação submetida aos porteiros.
    Os motoristas e cobradores de ônibus xingados.

    Estava na caminhada em Camburi, com minha esposa e meus dois filhos.
    Uma senhora passou ao lado de minha filha de dois anos e disse: - Coitada da criança.
    E eu rebati: - Coitada da senhora. Como ela decidiu seguir a caminhada dela, não foi possível debater.

    A sensação de ser odiado, Lúcio, se compensa pela presença de colegas e seus filhos pequenos em caminhadas como a de ontem e por manifestações de pessoas não bobas que já sentiram e entenderam o que significa o atual governo e que querem sua continuação.

    Alexandre

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